quinta-feira, 2 de julho de 2015
A Entrega do Dízimo - Prática Cristã ou Legalismo Farisaico Institucionalizado?
por
Rev. Valdeci dos Santos
Um debate sobre o dízimo pode ser espinhoso e cansativo uma vez que abordagens cristãs relacionadas a finanças são, geralmente, marcadas por controvérsias e atritos. Lutero expressou essa dificuldade ao afirmar que “três conversões são necessárias: a conversão do coração, a da mente e a da bolsa”. Ao escrever sobre esse assunto, Caio Fábio também encontrou dificuldades e definiu a contribuição financeira como “uma graça que poucos desejam”. Mas ainda que delicado e árduo, esse assunto exige cuidadosa reflexão e estudo.
Que a entrega do dízimo é uma prática bíblica, poucos contestam. Que o cristão deve contribuir para com as atividades eclesiásticas, também há pouca dúvida. Porém, que os cristãos estão sujeitos à prática de entregar sistematicamente o dízimo é motivo de grande debate. Aqueles que entregam o dízimo crêem estar obedecendo aos mandamentos de Deus e julgam, com isso, tributar culto ao Senhor. Por sua vez, os antidizimistas entendem que a prática da contribuição na base de 10% seja um sistema mosaico e legalista e, portanto, incompatível com a liberdade que os cristãos gozam em Cristo. Segundo essa perspectiva, a única forma de contribuição permissível aos cristãos é aquela por meio das ofertas voluntárias, às quais devem obedecer ao princípio da espontaneidade pessoal, pois são segundo o ofertante “tiver proposto no coração” (2Co 9.7). Uma resposta adequada a essa questão demanda uma análise cuidadosa dos variados sistemas de contribuição registrados nas Escrituras.
É surpreendente notar que a entrega do dízimo, uma prática litúrgica prescritiva no Antigo Testamento, não recebe a mesma ênfase no Cristianismo neotestamentário. Jesus parece ter autenticado a prática do dízimo para os escribas e fariseus (Mt 23.33 e Lc 11.42), mas nunca deu semelhante mandamento aos seus discípulos. Igualmente o escritor de Hebreus argumentou que Abraão deu o dízimo ao sacerdote a Melquisedeque (Hb 7.2 e 5), mas não exortou os seus leitores a continuarem tal prática. O apóstolo Paulo escreveu sobre o dever cristão de sustentar os necessitados (1Co 16.1-3, 2Co 8-9 e Ef 4.28), de contribuir para com o ministério da palavra (1Co 9) e insistiu na generosidade da contribuição, mas nunca fez referência ao dízimo como um mandamento de Deus para os cristãos. Essas observações são suficientes para alguns defenderem que o dízimo é anticristão e que a insistência sobre o mesmo não passa de um zelo legalista e farisaico, não devendo fazer parte nem do culto nem da vida cristã.
A fim de analisar a continuidade ou descontinuidade da prática do dízimo no Novo Testamento, este artigo observará uma ordem progressiva. Primeiro, será feito um estudo sobre o dízimo e outras contribuições no Antigo Testamento. Em seguida, será feita uma análise do sistema de contribuições estabelecido no Novo Testamento. Finalmente, buscar-se-á elementos de continuidade e descontinuidade de ambos os Testamentos sobre o assunto. Assim se poderá decidir teologicamente sobre a propriedade ou impropriedade da prática do dízimo entre os cristãos contemporâneos.
1. O dízimo e as contribuições no Antigo Testamento
No Antigo Testamento, a entrega do dízimo baseava-se na convicção teológica de que o Senhor é o dono de toda a terra, o doador e o preservador da vida (Sl 24). O dízimo era santo ao Senhor e sua entrega seria uma demonstração prática do reconhecimento da soberania de Deus sobre a terra, seus frutos e a própria vida do ofertante. Essa era a razão pela qual reter os dízimos seria equivalente a roubar o Senhor (Ml 3.10). Ao mesmo tempo, a entrega dos dízimos era a expressão prática da gratidão a Deus por suas bênçãos e generosidade para com a nação israelita. Logo, aquele ato possuía significado cúltico e ocorria em cerimônias acompanhadas de intensa celebração e adoração a Deus (Dt 12.5-19). Todavia, a retenção do dízimo não estava sujeita às mesmas penalidades legais provenientes da desobediência civil da lei, como exclusão social e apedrejamentos. A infidelidade do povo seria disciplinada por Deus pelas catástrofes sociais e econômicas.
As razões para a adoção da décima parte como padrão de contribuição no Antigo Testamento não são específicas. Provavelmente esse costume estivesse ligado ao sistema cultural antigo de contar as unidades em dez, o que teria sido facilitado pelos dez dedos das mãos e dos pés. Na numerologia bíblica, o número dez parece ser altamente significativo, uma vez que ele é o produto da soma de dois números sagrados: o três (Trindade) e o sete (o número da perfeição). A dezena foi comumente empregada na medição da arca (Gn 6.15), bem como na medição do tabernáculo e de sua mobília (Êx 26). O fato da entrega do dízimo ser uma prática comum entre outros povos antigos, mesmo aqueles que não tinham a mesma perspectiva hebraica sobre os números, desestimula qualquer interpretação do mesmo como sendo somente uma medida sagrada. Nesse caso, a identificação do dízimo com o sistema de contar unidades em dez parece ser a razão mais plausível para a adoção da décima parte como padrão proporcional de contribuição entre os israelitas.
Aqueles que argumentam que o dízimo é prática meramente legalista do Antigo Testamento devem atentar ao fato de que esse costume precedia à instituição da lei mosaica. No período patriarcal, Abraão entregou o dízimo de tudo a Melquisedeque (Gn 14.20). O que foi entregue naquela ocasião, era a décima parte dos despojos de uma batalha e não do produto da terra ou do rebanho. O texto não traz mais informações quanto à forma ou o motivo de Abraão tê-lo feito, pois ao que se sabe, não havia ainda nenhum mandamento divino obrigando-o a entregar o dízimo. Alguns anos depois daquele episódio, Jacó fez um voto de dar a Deus o dízimo de tudo o que viesse a possuir em sua jornada a Padã-Harã (Gn 28.22). Não se sabe como aquele voto seria cumprido, como o dízimo seria entregue ou quem haveria de recebê-lo. Porém, esses casos apontam para duas verdades básicas: a prática de entregar o dízimo fazia parte da religiosidade dos patriarcas e ela era uma expressão direta do reconhecimento da generosidade de Deus para com os seus adoradores. Em ambos os casos, a entrega do dízimo foi associada à adoração ao Senhor.
Na lei mosaica, a prática religiosa dos patriarcas quanto à entrega dos dízimos foi incorporada às normas de contribuição instituídas por Deus à nação de Israel. Esse sistema consistia de dízimos e ofertas alçadas (quando o povo era divinamente levantado ou motivado a ofertar). Segundo essas normas, os judeus deveriam entregar o dízimo dos cereais do campo, dos frutos das árvores e do produto do rebanho (Lv 27.30-34). Se alguém quisesse entregar o valor monetário no lugar do cereal ou das frutas, poderia fazê-lo, desde que um quinto da soma fosse adicionado ao valor principal dos mesmos (Lv 27.31). No caso de animais, não a possibilidade de resgate seria reduzida (Lv 27.30s, Dt 12.6). Entregar animais defeituosos ou em condições inferiores ao restante do rebanho como parte do dízimo era terminantemente proibido e seria interpretado como um ato de ofensa à santidade de Deus.
O dízimo deveria ser entregue aos levitas e destinava-se, em grande medida, ao sustento do santuário e dos sacerdotes que nele oficiavam (Nm 18.21-24). Devido à natureza do trabalho que realizavam no santuário, os levitas não tinham outros meios de renda, nem gado e nem herança entre as tribos de Israel. Conseqüentemente, eles seriam sustentados pelos dízimos. Há que se notar que os levitas não tinham permissão para conservar para si a totalidade dos dízimos consagrados. Ao contrário, eles mesmos estavam sujeitos às normas de contribuição e deveriam entregar “os dízimos dos dízimos” (Nm 18.26 e 28). A parte oferecida pelos levitas seria sempre a melhor parte dos dízimos recebidos.
Os dízimos eram geralmente entregues no templo, em um ato de adoração, o qual assumia a forma de uma celebração festiva e familiar (Dt 12.5-19). Por meio da entrega dos dízimos o povo era incentivado a reverenciar o Senhor com todas as suas posses. Havia duas ocasiões para a entrega dos dízimos no Antigo Testamento: anualmente ou a cada três anos. Sobre a prática anual, os israelitas levavam o dízimo ao templo e ali participavam, juntamente com os sacerdotes, de uma refeição cultual envolvendo a família (Dt 12.5,11 e 14.23). Geralmente, os dízimos do triênio eram o produto do gado e do fruto da terra e poderiam ser substituídos por um equivalente monetário (Dt 14.24-27). A soma dessa contribuição trienal permanecia em diferentes cidades de Israel e era destinada ao sustento dos sacerdotes e dos necessitados (Dt 14.22-29). A lei previa que parte do dízimo seria utilizada como um imposto nacional destinado ao sustento da monarquia. Por essa razão, no final do período dos juízes, Samuel procurou desmotivar o povo que clamava por um rei, apelando para as conseqüências econômicas e advertindo que o rei teria que ser sustentado por meio dos dízimos do povo (1Sm 8.15 e 17).
A entrega dos dízimos era tão central à vida da nação de Israel que Neemias a restituiu tão logo o povo foi liberto do cativeiro babilônico (Ne 13.10-14). A desobediência dessa prática, de acordo com o profeta Malaquias, equivalia ao pecado de roubar a Deus e o povo seria repreendido e até punido por fazê-lo (Ml 3.6-12). Em épocas de intensa idolatria, os israelitas entregavam seus dízimos aos ídolos em cultos pagãos, multiplicando assim suas transgressões diante do Senhor (Am 4.4,5). Por essa razão, toda reforma religiosa e despertamentos espirituais em Israel incluía a restauração da prática da entrega dos dízimos, como aconteceu na época de Ezequias e Neemias (2Cr 31.10,11; Ne 13). Ao que parece, os dízimos eram recolhidos em um depósito que na época de Neemias eram chamadas “as câmaras da casa do tesouro” (Ne 10.38). É importante observar que a restauração da prática nacional da entrega dos dízimos era recebida com grande alegria por parte do povo, pois expressava o comprometimento do mesmo para uma adoração genuína a Deus (Ne 12.44).
Além dos dízimos, a lei mosaica prescrevia outros tipos de contribuições, como era o caso das ofertas das primícias e das ofertas alçadas (Êx 23.16, 19 e 34.22-26). Essas ofertas deveriam atender ao princípio da proporcionalidade, pois eram dadas segundo a bênção do Senhor sobre os ofertantes (Dt 16.10). Segundo as normas para essas contribuições, as ofertas das primícias eram especialmente apresentadas durante a Festa das Semanas, também chamada de Pentecoste ou Festa das Primícias, por ser realizada cerca de 50 dias após a Páscoa e por coincidir com os primeiros frutos da colheita anual em Israel (Nm 28.26). Parte dessas ofertas era dedicada ao sustento do pobre, do órfão e da viúva, outra parte à realização de uma ceia comum e ainda uma terceira parte destinava-se ao sustento dos sacerdotes. Enquanto o dízimo era anual e trienal, as ofertas poderiam ser entregues em várias ocasiões do ano, especialmente na época das colheitas ou eventos festivos. Assim como os dízimos, as ofertas das primícias também eram entregues em reconhecimento da soberania e generosidade de Deus para com a nação de Israel (Dt 26.1ss).
Assim como acontecia com o dízimo, a entrega das ofertas era acompanhada por grandes celebrações.
Algumas pessoas confundem as ofertas das primícias com o dízimo, mas o relato bíblico indica que se tratavam de duas formas distintas de contribuição na nação de Israel. Embora a oferta das primícias e os dízimos sejam mantidos lado a lado em alguns textos da Bíblia (Dt 26.1-15), as ofertas deveriam ser entregues várias vezes no ano, ao passo que o dízimo era anual e trienal. Não se deve ainda confundir as ofertas das primícias com outras ofertas de caráter mais devocionais como as ofertas de libações (Nm 15.1-15), ofertas de holocausto, ofertas de manjares e sacrifícios pacíficos (Lv 1-3).
Ainda que as ofertas devocionais expressassem gratidão e consagração a Deus, elas não tinham qualquer propósito econômico.
As ofertas alçadas, ou contribuições esporádicas, eram aquelas que o próprio Deus movia o coração dos ofertantes para fazê-las. O povo era levantado (alçado) a contribuir de uma forma extraordinária para com a obra de Deus, quer por mera gratidão ou por alguma necessidade específica. Um exemplo desse tipo de oferta encontra-se em Êxodo 25-36, por ocasião da construção do tabernáculo. Aquela construção foi divinamente ordenada e providenciaria um local de adoração para o povo de Deus.
O tabernáculo era a tenda da congregação, onde se encontrava a arca do testemunho e onde Deus encontrava-se com o seu povo por meio do sumo sacerdote (Êx 29.42-3; Nm 17.4). Para a construção do Tabernáculo, o Senhor ordenou que o seu povo ofertasse voluntariamente, pois os dízimos já tinham a sua aplicação normal na vida da nação. Um outro exemplo pode ser encontrado nas ofertas de Davi e dos príncipes para a construção do templo (1Cr 29). Aquelas ofertas resultaram em “grande abundância” que foi dedicada ao Senhor e todos “comeram e beberam, naquele dia, perante o Senhor, com grande regozijo” (1Cr 29.22).
O princípio básico das ofertas alçadas encontra-se em Êxodo 25.2: “Fala aos filhos de Israel que me tragam oferta; de todo homem cujo coração o mover para isso, dele recebereis a minha oferta”. Essas ofertas não eram compulsórias, mas voluntárias. Os contribuintes eram todos aqueles cujo coração era especialmente movido para tal. Esse mesmo princípio foi enfatizado em Êxodo 35.5 e o resultado foi que “veio todo o homem cujo coração o moveu e cujo espírito o impeliu e trouxe a oferta ao Senhor para a obra da tenda da congregação, e para todo o seu serviço, e para as vestes sagradas” (Êx 35.21). Porém, como afirma Solano Portela, “a voluntariedade da oferta não significava aleatoriedade. Ou seja, por ser voluntária não significava que não podia ser planejada”. No caso das ofertas para o tabernáculo, elas eram levadas a cada manhã, enquanto durou a construção do mesmo e quando havia o suficiente, o povo foi proibido de levar mais alguma coisa (Êx 36.4-7). Dessa forma, o planejamento não foi interpretado como contraditório à oferta de coração e nem como uma atividade sem espiritualidade.
Alguns princípios sobre o sistema de contribuição da lei mosaica devem ser corretamente entendidos e enfatizados. Primeiro, ainda que o propósito imediato dos dízimos era o sustento dos levitas e do santuário, todo o povo de Israel deveria entregá-lo como um reconhecimento de que o dízimo pertencia ao Senhor (Lv 27.30). As ofertas também expressavam o reconhecimento da soberania divina sobre a vida e os sucessos humanos. Ambos eram ordenanças divinas e a prática das mesmas era sempre em obediência e gratidão a Deus. Em segundo lugar, os dízimos eram destinados ao auxílio dos necessitados, especialmente o estrangeiro, o órfão e a viúva (Dt 14.28,29). Como adverte D. A. Carson: “há sempre que se guardar contra o risco de isolar o dízimo de seu contexto maior relacionado à prática da generosidade e da justiça social”.[v] Em terceiro lugar, uma parte tanto dos dízimos quanto das ofertas das primícias destinava-se à realização de uma refeição nacional onde todo o Israel, reunido em diferentes cidades, celebrava as bênçãos de Deus sobre a nação (Dt 12.12). Essa refeição tinha o propósito de celebrar a Deus por suas bênçãos e preservação da vida dos israelitas. Na comunidade pactual de Israel, a contribuição era um ato de adoração ao Senhor de toda a terra. Em quarto lugar, os dízimos atendiam o princípio da proporcionalidade, pois pela entrega dos 10% todos davam igualmente. Há que se observar ainda que essa era uma contribuição sistemática e não esporádica.
Por alguma razão, o montante da contribuição judaica no período intertestamentário e nos primeiros anos da era cristã passou a ser um imposto per capita de meio siclo por ano, o que Josefo afirma atender “ao costume da nação”. G. F. Hawthorne interpreta esse imposto como aquelas duas dracmas que foram cobradas de Pedro e de Jesus (Mt 17.24). Ele informa que essa dívida era cobrada não apenas dos judeus da Palestina como também daqueles que se encontravam a Diáspora. Hoje em dia, muitos judeus piedosos contribuem com o dízimo para propósitos educacionais, religiosos e sociais.
Dessa forma, o princípio religioso foi incorporado às normas civis da nação.
2. O dízimo e as contribuições no Novo Testamento
É verdade que o Novo Testamento não apresenta diretrizes claras sobre a prática da entrega do dízimo pelos cristãos e esse fator é, no mínimo, surpreendente. Como afirma Hawthorne, “já que o dízimo desempenhou um papel tão importante no AT e no judaísmo contemporâneo do cristianismo primitivo, é surpreendente descobrir que, em nenhuma ocasião, o dízimo é mencionado em qualquer das instruções dadas à igreja”. Com base nessa observação, não se pode afirmar que essa prática foi ab-rogada no Cristianismo neotestamentário. Antes de tomar posição sobre esse assunto, há que se analisar três assuntos diretamente relacionados no Novo Testamento: dízimo, dinheiro e contribuições religiosas.
Os evangelhos possuem três referências ao dízimo. A primeira encontra-se na parábola do fariseu e o publicano, na qual o fariseu se orgulhava de entregar o dízimo de tudo quanto ganhava (Lc 18.9-14). O propósito de Jesus foi o de condenar a atitude daqueles que “confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros” (v.9). Dessa forma, são comparadas as atitudes do fariseu e do publicano que entraram no templo com o propósito de orar. Enquanto o publicano “não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu” e clamava pela misericórdia divina (v.13), o fariseu “orava de si para si mesmo” e orgulhava-se por jejuar duas vezes por semana e dar o dízimo de tudo quanto ganhava (v.12). O orgulho do fariseu devia-se ao fato dele fazer mais do que a lei determinava, pois a mesma exigia apenas o dízimo do produto agrícola e pecuário (Dt 14.22,23). Dessa forma, o que foi condenado na parábola não foi a prática da entrega do dízimo, mas o fato do fariseu depender de sua justiça própria ao invés de apelar para a graça e misericórdia de Deus.
A segunda referência ao dízimo nos evangelhos encontra-se em Mateus 23.23 ou no texto paralelo de Lucas 11.42. Nesses versículos Jesus também faz referência a uma prática comum dos escribas e fariseus, que pareciam extremamente zelosos quanto à obediência dos aspectos mínimos da lei (dar o dízimo da arruda e do cominho), mas negligenciavam a prática da misericórdia, da justiça e da fé. Jesus os reprovou dizendo que deveriam “fazer estas coisas, sem omitir aquelas!”
Como afirma Boanerges Ribeiro, “Jesus não censura os fariseus por darem o dízimo, mas por julgarem que o dízimo substitui a base real das relações com Deus”. A reprovação de Jesus parece ter sido, por implicação, uma clara legitimação da entrega dos dízimos, posto que ele reprovou o fato dos fariseus negligenciarem a justiça, a misericórdia e a fé, não o zelo deles pela entrega do dízimo. Certamente seria um erro procurar formular uma teologia do tratamento de Jesus sobre o dízimo baseando-se apenas nesse fragmento do versículo. Mas há que se admitir que Jesus, a priori, condenou apenas a hipocrisia dos escribas e fariseus e não a prática da entrega dos dízimos. O que foi condenado por Jesus não foi a prática do dízimo, mas abusos farisaicos provenientes da mesma.
Além das referências ao dízimo encontradas nos evangelhos, há a passagem de Hebreus 7.1-10. A ênfase desse texto é primariamente dirigida ao sacerdócio de Cristo e não ao pagamento do dízimo. Conseqüentemente, ao defender a legitimidade do sacerdócio de Melquisedeque como um tipo de Cristo, o escritor de Hebreus lembra que Abraão pagou o dízimo “tirado dos melhores despojos” a ele (vs.2 e 4). Assim, os próprios sacerdotes levitas, descendentes de Abraão, pagaram o dízimo a Melquisedeque na pessoa do patriarca e reconheceram a superioridade daquele sacerdócio que figurava o ministério de Cristo (vs.5-9). Embora não seja o propósito do escritor da carta discutir aspectos de continuidade ou descontinuidade da entrega do dízimo, parece seguro afirmar que ele usou uma prática conhecida (e talvez até comum) entre os cristãos hebreus, a fim de ilustrar um princípio acerca da eternidade do sacerdócio de Cristo.[xi] Há que se considerar que o escritor da carta aos Hebreus certamente não usaria o exemplo do dízimo se o mesmo não fosse uma prática conhecida por seus leitores.
Ainda que a abordagem de Jesus sobre o dízimo não seja extensa, o mesmo não pode ser dito a respeito de seu tratamento sobre o dinheiro. Conforme V. S. Azariah, “há poucos assuntos sobre os quais nosso Senhor tenha dado mais claro e mais completo ensino do que o referente ao dinheiro”. Certamente nem todas as vezes que Jesus falou sobre o dinheiro ele o fez em referência à contribuição. Exemplos disso são encontrados em sua comparação do reino dos céus a um tesouro escondido no campo (Mt 13.44), na exposição sobre o valor do evangelho (Mt 12.35), na parábola do administrador infiel (Lc 16.1-13) e outros textos. Mesmo assim, a atenção dada por Jesus à questão financeira foi notória: “vai da parábola do semeador à do rico proprietário, do encontro com o jovem rico ao encontro com Zaqueu, dos ensinamentos acerca da confiança de Mateus 6 aos ensinamentos acerca dos perigos das riquezas em Lucas 6”.
Atentar para o ensino de Jesus sobre o dinheiro é especialmente elucidativo na reflexão sobre contribuições no Novo Testamento.
Para fins didáticos, a abordagem de Jesus sobre dinheiro pode ser analisada a partir de suas observações sobre o uso negativo e positivo do mesmo. Com relação ao uso negativo do dinheiro, Jesus deixa claro que o apego às riquezas pode ser um grande empecilho à salvação (Mt 13.22 e Lc 18.24,25), bem como ao relacionamento do ser humano com Deus (Lc 12.15, 16.13 e Mt 6.19). A crítica de Jesus é veementemente dirigida contra a avareza. Segundo ele, o cristão deve ser capaz até de vender os bens para dar esmolas e contribuir com o necessitado (Lc 6.30 e 12.33). Jesus ensinou que o apego ao dinheiro pode ser grande fonte de ansiedade na vida cristã, pois ninguém pode servir a Deus e a Mamon (o deus das riquezas). O dinheiro, na perspectiva de Jesus, deve ser servo e nunca senhor do cristão.
Sempre que aquilo que foi determinado por Deus para servir as necessidades humanas adquire senhorio sobre as pessoas, desastres acontecem e dentre esses, a ansiedade dominante (Mt 6.24-34). Por essa razão, Richard J. Foster interpreta a referência de Jesus a Mamon como uma indicação de que as riquezas podem ser adoradas como um deus rival, uma potestade com poder de desviar o cristão do caminho do Senhor.[xiv] Parece ser suficiente afirmar que o apego ao dinheiro para Jesus é uma idolatria que os cristãos devem evitar, a fim de crescerem em comunhão, intimidade e dependência ao Senhor.
Ainda que Jesus tenha advertido contra o perigo do apego ao dinheiro, ele não impôs qualquer voto de pobreza como condição à vida cristã.
O que ele atacou foi a “fascinação das riquezas”, o mau uso dos bens e a idolatria resultante dessas atitudes. No caso do jovem rico, por exemplo, o que Jesus exigiu foi que ele colocasse o reino de Deus em primeiro lugar em sua vida, o qual seria demonstrado pela renúncia dos seus bens em prol de seguir a Cristo (Mt 19.21). Jesus esclarece que qualquer tipo de riqueza é traiçoeiro quando o seu apelo consegue seduzir os homens e desviar-lhes a atenção da mensagem do reino de Deus. Qualquer coisa que leva o cristão a desejar a vida e o conforto terrenos mais do que a consumação do reino é nociva ao crescimento espiritual. Essa relação idólatra com o dinheiro parece ter sido uma das razões pelas quais Judas traiu Jesus, vendendo-o por trinta moedas de prata (Mt 26.15 e 27.3). O ensinamento de Jesus encontra repercussão nos escritos de Paulo, que afirmou ser a avareza uma terrível forma de idolatria capaz de controlar até mesmo os cristãos (Cl 3.5 e 1Tm 6.10).
Jesus ensinou que o dinheiro pode ser utilizado positivamente. Na parábola do bom samaritano ele ensinou que o dinheiro poderia ser usado para fazer o bem, pois o samaritano usou o dinheiro generosamente no cuidado do homem que ele encontrou ferido pelo caminho (Lc 10.25-37). Jesus ainda aprovou a decisão de Zaqueu em retribuir tudo o que havia defraudado e dar aos pobres a metade dos seus bens identificando-a como sinal de transformação na vida daquele publicano (Lc 19.1-10). Jesus também permitiu que ricas mulheres piedosas participassem do sustento de seu ministério (Lc 8.1-3) e comeu com pessoas ricas e privilegiadas (Lc 11.37). Outrossim, ele exortou os seus discípulos a darem esmolas (Mt 6.2-4). Quando empregados da maneira correta, os bens materiais e haveres podem ser instrumentos úteis para o auxílio ao próximo e o avanço da obra do reino.
Um exame detalhado da perspectiva de Jesus sobre o uso do dinheiro não seria completo sem uma análise de sua reação a dois assuntos: o pagamento do tributo civil e a contribuição religiosa. Com relação ao primeiro, o evangelista Mateus relata que Jesus, ainda que alegando isenção, pagou o imposto civil a fim de evitar escândalo por parte dos judeus (Mt 17.24-27). Em outra ocasião, quando o interrogaram sobre a legalidade de se pagar tributo a César, Jesus prontamente respondeu: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mt 22.15-22). Dessa forma, Jesus reprovou pelo exemplo qualquer ato de sonegação civil.
Sobre as contribuições religiosas, há que se observar o caso da viúva pobre. O evangelista Marcos registra que Jesus observava as pessoas lançarem o dinheiro no gazofilácio e elogiou a viúva pobre por seu desprendimento, pois “da sua pobreza deu tudo quanto possuía” (Mc 12.41-44). Deve-se notar que, naquele episódio, a contribuição foi tratada por Jesus como um assunto público a ponto de observar a atitude das pessoas ao fazê-lo. A contribuição da viúva pobre e dos outros judeus fazia parte da liturgia na sinagoga e esse fato não recebeu qualquer palavra de desaprovação por parte de Jesus. Ao contrário, ao aprovar a oferta daquela mulher, Jesus valorizou a oferta humilde e abnegada, exaltando-a acima da oferta do soberbo e daqueles que ofertavam apenas daquilo que lhes sobrava. Pode-se inferir que o Senhor se agrada de que seus servos cumpram seus compromissos financeiros, tanto civis quanto religiosos.
No que diz respeito a contribuições financeiras na igreja primitiva, a Escritura não permite nenhuma dúvida quanto às realizações das mesmas. O livro de Atos contém alguns relatos sobre o compartilhamento de posses com o objetivo de atender aos necessitados na igreja (At 2.45, 4.34 e 36,37). A própria eleição dos diáconos teve o propósito de promover certa assistência material a alguns menos favorecidos (At 6.1-6). A prática de cuidar dos necessitados tornou-se comum entre os cristãos a ponto do apóstolo Paulo exortar os membros de uma igreja gentílica, Éfeso, a trabalharem para terem “com que acudir ao necessitado” (Ef 4.28).
O escritor de Hebreus lembrou os seus leitores o tempo em que eles, com alegria, aceitaram o espólio dos bens em favor daqueles que estavam encarcerados (Hb 10.34). Ainda que essas contribuições fossem parte do dever religioso dos cristãos primitivos, nota-se que elas tinham objetivos meramente sociais e eram esporádicas, não podendo, portanto, ser comparadas ao costume da entrega dos dízimos no Antigo Testamento.
A prática sistemática da contribuição financeira no Cristianismo primitivo que mais se aproxima da entrega do dízimo é aquela descrita como uma coleta a favor dos santos (1Co 16.1-3; 2Co 8-9). A palavra empregada por Paulo para descrever essa forma a coleta é logei,aj (logeía) que “pode significar uma cobrança de impostos, bem como contribuições voluntárias coletadas no culto”. Além do mais,
pode-se supor que a escolha que Paulo fez desse verbete incomum dê a entender um imposto oficial pago pelas igrejas paulinas (...) semelhante a taxa per capita paga anualmente ao templo pelos judeus fiéis que viviam fora, bem como dentro, da Palestina, e muito semelhante ao dízimo quanto ao conceito.
É importante observar que alguns cristãos receberam a exortação de Paulo com alegria e interpretaram a contribuição como um privilégio (2Co 8.4). Aquela coleta foi incluída na liturgia da igreja de Corinto (1Co 16.1,2) e deveria ser interpretada como uma expressão de generosidade, gratidão e adoração a Deus (2Co 9.10-13). Em outra ocasião, Paulo insistiu que aquela prática fosse interpretada como um ato de obediência ao evangelho de Cristo (2Co 9.13). Deve-se considerar o aspecto sistemático e o planejamento envolvido naquela coleta, a ponto de Paulo afirmar que a igreja de Corinto estava preparada há um ano para fazê-la (1Co 16.1,2 e 2Co 9.1,2). Por último, aquela contribuição seria proporcional, conforme a prosperidade do contribuinte (1Co 16.2). Assim, todos contribuiriam igualmente, não em valor, mas em percentual.
O Novo Testamento fala de outras práticas de contribuição existentes na igreja primitiva. Há pelo menos um registro de uma contribuição levantada em favor de Paulo e a obra missionária que ele realizava (Fp 4.10-19); uma instrução extensa sobre o dever da igreja em sustentar aqueles que se afadigam no ministério da Palavra (1Co 9.1-18); uma exortação para que os ricos sejam generosos em dar e prontos a repartir (1Tm 6.17,18) e que nessa matéria os cristãos reflitam sobre a graça e o exemplo de Cristo que sendo rico se fez pobre por amor a eles (2Co 8.9). Por essas e outras razões, o Novo Testamento ensina que as contribuições cristãs não devem se limitar, mas até exceder ao percentual estipulado pelo dízimo.
3. Continuidade e Descontinuidade entre o Antigo e o Novo Testamentos
O debate sobre a continuidade e descontinuidade entre o Antigo e o Novo Testamento é outro assunto intenso e abrangente no meio acadêmico. Pode-se dizer que a discussão sobre esse assunto ocupa um longo capítulo na história da igreja.
No geral, a discussão concentra-se em torno de temas como a tríplice função da lei e as diferenças existentes entre a lei e a graça.
Mas há os que defendem até mesmo uma diferença conceitual sobre Deus em ambos os testamentos. Movidos por falsos esteriótipos, alguns insistem na existência de um abismo insuperável entre a apresentação de Deus nos dois testamentos a ponto de argumentarem que o Deus do Antigo Testamento tenha se convertido no Novo Testamento. No entanto, um estudo mais aprofundado da Escritura revelará que o Deus do Antigo Testamento não é uma pessoa totalmente arbitrária e irada, assim como a pessoa de Jesus no Novo Testamento não proclama apenas bondade e amor ao próximo.
Como Tremper Longman III afirma, “assim como o Deus do Antigo Testamento não é um ameaçador monolítico, também Jesus Cristo não é totalmente passivo ou pacifista”.
Na discussão sobre continuidade e descontinuidade entre os testamentos, duas perspectivas hermenêuticas opostas destacam-se. A primeira, e talvez mais conhecida no cenário latino-americano, é o dispensacionalismo. Em síntese, esse ensino defende que:
não há na Palavra da Verdade divisão mais evidente e admirável que a estabelecida entre a Lei e a Graça. Realmente, esses dois princípios de tanto contraste caracterizam as duas mais importantes dispensações – a judaica e a cristã. (...) É da mais vital importância observar, entretanto, que as Escrituras, em qualquer dispensação, jamais misturam ou confundem esses dois princípios (...) A lei é Deus proibindo e exigindo. A graça é Deus suplicando e dando.
Conseqüentemente, essa perspectiva demanda uma minimização da importância e aplicação da lei à vida cristã. Somente em alguns casos mais extremos, como afirma Bruce Waltke, os defensores dessa posição chegam a desconsiderar que “a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom” (Rm 7.12).
Segundo os dispensacionalistas, as normas estabelecidas no período da lei mosaica devem ser ignoradas pelos cristãos, pois não se aplicam àqueles que estão debaixo da graça.
Contrário ao dispensacionalismo, há a perspectiva do teonomismo, ou o movimento de reconstrução cristã. Essa corrente teológica defende que as exigências da lei mosaica ainda se aplicam aos cristãos nos dias atuais.[xxiii] Certamente os teonomistas entendem que os aspectos cerimoniais da lei, os costumes e aparatos da adoração israelita, foram cumpridos em Cristo e os cristãos já não se encontram obrigados aos mesmos. Mas insistem na atualidade das exigências morais e civis da lei, incluindo suas penalidades, bem como no dever do governo civil executá-las na sociedade. Os teonomistas defendem uma estrita continuidade entre ambos os testamentos e não estabelecem uma distinção muito detalhada entre ambos.
Como era de se esperar, a aplicação dos pressupostos dispensacionalista e teonomista sobre a questão do dízimo conduz a diferentes conclusões. Aqueles que se inclinam ao dispensacionalismo certamente defenderão que o dízimo era uma norma válida apenas para a antiga aliança e que na dispensação da graça, somente as contribuições esporádicas e voluntárias devem ser motivadas. De acordo com essa interpretação, insistir na prática do dízimo é um erro farisaico que deve ser eliminado do Cristianismo contemporâneo.
Os teonomistas não vêem nenhuma necessidade de questionar a relevância do mandamento sobre o dízimo, pois esta seria mais uma prática à qual o cristão está obrigado. A única diferença entre os dois testamentos acerca desse assunto para os teonomistas é que a entrega dos dízimos não ocorre mais no contexto cerimonial do Antigo Testamento.
Há, certamente, graves problemas com essas duas interpretações da Bíblia e esses não devem passar despercebidos ao estudante da Escritura. O dispensacionalismo cria um abismo intransponível entre o Antigo e o Novo Testamentos arriscando, inclusive, a unidade da Escritura e a relevância de alguns aspectos da lei para os cristãos.
O teonomismo, por sua vez, parece esquecer que hoje Deus não opera mais no mundo por meio de uma nação escolhida, mas por um povo eleito que se encontra espalhado pelas nações do mundo. Dessa forma, o cristão interessado no verdadeiro ensino da Palavra deverá buscar ajuda em outra escola hermenêutica. Nesse ponto, Tremper Longman III aponta para aos benefícios da leitura das Escrituras a partir da teologia do pacto, ou seja, a hermenêutica pactual.
A hermenêutica pactual, segundo Longman III, focaliza na pessoa de Deus e no seu relacionamento com o seu povo como princípio imprescindível para a compreensão do ensino bíblico.
A partir dessa perspectiva a obediência à lei, tanto para os judeus quanto para os cristãos, deveria ser uma expressão de gratidão e nunca um fardo insuportável.
A estrutura pactual das Escrituras aponta para uma progressão da revelação especial através dos tempos até Jesus. Finalmente, a hermenêutica pactual reconhece que o relacionamento entre o Antigo e o Novo Testamentos contém tanto elementos de continuidade como de descontinuidade. Certamente os aspectos civis e cerimoniais da lei não se aplicam mais aos cristãos, pois os primeiros limitavam-se a Israel como uma nação e os segundos foram cumpridos em Cristo (Hb 7-10). O povo de Deus atualmente não se limita a uma nação, mas é um corpo espiritual, constituído por indivíduos de diferentes etnias e sobre o qual Cristo é o cabeça. Todavia, o aspecto moral da lei possui tanto caráter pedagógico (Rm 7.7,8 e Gl 3.23,24) quanto revelacional da vontade de Deus para o seu povo.
Em sua dissertação Title as gift: The institution in the Pentateuch ans in light of Mauss’s prestation theory, o acadêmico Menahem Herman defende a interpretação pactual e sua aplicação ao estudo sobre a prática do dízimo.
Segundo Herman, o dízimo era um símbolo da lealdade pactual do povo de Deus no passado e, dessa forma, continua sendo significativo para os cristãos. Seguindo os mesmos princípios, Leland Wilson chega a conclusões semelhantes e defende que “não é correto perguntar se a idéia de mordomia deve aplicar-se a lei ou ao evangelho. Antes de tudo, deve-se apoiar na dialética entre os dois (. . .) Dessa forma, ainda que o dízimo possua raízes na fé hebraica, sua prática é irrigada e alimentada na Palavra do Novo Testamento”. Em ambos os exemplos parece haver um zelo pela unidade das Escrituras e o aspecto progressivo da revelação.
No que diz respeito à prática do dízimo, discriminar os elementos de continuidade e descontinuidade entre os dois testamentos parece mais difícil do que reconhecer a existência dos mesmos. Há alguns aspectos óbvios que podem ser facilmente observados por meio de um estudo panorâmico das Escrituras. Primeiramente, há que se destacar a descontinuidade da centralidade do templo. Enquanto no Antigo Testamento a presença de Deus entre o seu povo parecia estar vinculada à Jerusalém e ao templo, no Novo Testamento Deus habitou entre os seus na pessoa de Jesus (Jo 1.14). Esta parece ter sido a razão pela qual o escritor de Hebreus refere-se aos cristãos como tendo chegado, não meramente a um monte geográfico, mas “ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontáveis hostes de anjos, e à universal assembléia e igreja dos primogênitos” (Hb 12.22-23). Assim, o templo como um espaço físico, não ocupa mais a centralidade no culto do povo de Deus, pois em Cristo os adoradores podem adorá-lo em espírito. Não há mais base escriturística para a manutenção do sistema levítico do Antigo Testamento, uma vez que o aspecto cerimonial da lei foi abolido em Cristo Jesus. Assim, torna-se imprudente identificar determinados grupos no Cristianismo (por exemplo, os músicos e cantores) como os levitas atuais. Tão pouco se deveria identificar os pastores como os únicos ungidos do Senhor, pois esses dois erros são contrários à doutrina do sacerdócio universal dos crentes. Pedro enfatiza que todos os cristãos são “ raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de propriedade exclusiva de Deus” (1Pe 2.9). Negar essa verdade seria retornar ao sacerdotalismo do Antigo Testamento ou ao catolicismo medieval.
Outro elemento de descontinuidade na questão dos dízimos refere-se à ocasião para a entrega dos mesmos. Como foi visto, essa entrega no Antigo Testamento estava vinculada às festas religiosas e ao calendário agrícola daquela nação. Hoje em dia, aquele calendário não é mais observado pelos cristãos e a entrega dos dízimos e ofertas atende outras orientações. No caso do Novo Testamento, os cristãos parecem ter observado algumas determinações relacionadas à necessidades eclesiásticas, o atendimento ao próximo e a participação coletiva na obra da evangelização (1Co 8-9). Logo, os cristãos não entregam mais suas contribuições observando os padrões litúrgicos da nação israelita.
Existem alguns princípios de continuidade entre ambos os testamentos quanto à entrega do dízimo e contribuições em geral que não deveriam ser ignoradas. Em primeiro lugar, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, as contribuições financeiras são expressões simbólicas de que tudo pertence ao Senhor e que a vida sobre a terra depende da graça e providência de Deus. Tanto o crente que vivia no período veterotestamentário quanto aquele do Novo Testamento possuíam a convicção de serem totalmente dependentes do Senhor e de seu cuidado, inclusive nas questões financeiras (Dt 12.10,11 e 2Co 9.8). Tanto o povo de Deus no Antigo quanto no Novo Testamentos são exortados a contribuirem com alegria e boa vontade (Dt 12.7 e 2Co 9.7). Os filhos de Deus devem sempre comparecer com alegria diante do Pai, inclusive no momento da contribuição. Em terceiro lugar, em ambos os testamentos há instruções para que a contribuição seja sistemática e planejada. Em sua análise de 2 Coríntios 9.7, Portela Neto afirma que “o fato de que ele [Paulo] nos ensina que a nossa contribuição deve ser alvo de prévia meditação e entendimento nos indica, com muito mais força, que ela deve ser uma contribuição planejada, não aleatória, não dependente da emoção do momento”.
É óbvio que Paulo esperava uma contribuição sistemática dos seus leitores, pois ela deveria ser realizada no primeiro dia da semana (domingo), no momento em que os cristãos se reuniam (1Co 16.2,3).
Em quarto lugar, em ambos os testamentos a contribuição generosa é um ato desejável por Deus (Êx 36.4-7 e 2Co 8.19,20). No caso dos escritores do Novo Testamento, há uma insistência para que seus leitores contribuam generosamente (1Tm 6.18). Finalmente, em ambos os testamentos há orientações para que a contribuição seja proporcional. No Antigo Testamento, o princípio claro da proporcionalidade é o dízimo. No Novo Testamento não há nenhum texto que claramente ab-rogue a aplicação do mesmo princípio. Dessa forma, não é a condição financeira o critério para a contribuição, pois se é proporcional, ninguém é penalizado e ninguém é desqualificado. O certo é que Deus espera que os seus filhos contribuam proporcionalmente aos seus ganhos. Compreendendo esse princípio, D. A. Carson provoca a reflexão: “Então, porque não estabelecer o objetivo de atingir vinte por cento em sua contribuição? Ou trinta? Ou, até mais, dependendo de suas circunstâncias?”
Deve-se notar que tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, a contribuição financeira é um meio divino de Deus suprir as necessidades de seu povo. Tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos, a atividade dos ministros que se afadigam na obra do ensino deve ser financiada pelas contribuições do povo de Deus (1Co 9.13,14). Em ambas as ocasiões, o momento da contribuição parece ter ocorrido em um contexto familiar de alegria e adoração a Deus (Dt 12.7-12 e 2Co 8.5). A novidade parece ser que, ao chegar no Novo Testamento, o leitor da Escritura encontra uma prática de contribuição na igreja primitiva que excedia o percentual do dízimo.
4. Objeções e respostas
O debate sobre a legitimidade da entrega dos dízimos entre os cristãos não ocorre apenas no campo exegético e acadêmico, mas especialmente nas conversas diárias e nos grupos de interações cristãos. Nesse caso, as posições são geralmente apresentadas no formato de teses resumidas, sem, contudo, uma devida apresentação das bases bíblicas para as mesmas. Uma vez que o autor desse artigo não tem encontrado nenhuma razão plausível para a rejeição do dízimo como uma prática cristã, há que analisar algumas das principais objeções a esse exercício, bem como algumas respostas aos mesmos.
Objeção 1:
A prática do dízimo foi instituída pela lei mosaica e, portanto, o cristão está desobrigado de observá-la.
Resposta:
As Escrituras ensinam que a prática do dízimo precede a instituição da lei, sendo comum entre os patriarcas e apenas incorporada à lei mosaica. À luz do exemplo de Abraão e Jacó, parece mais correto asseverar que a entrega do dízimo diz respeito à relação do crente com o seu Senhor, pois é um reconhecimento prático de que tudo pertence a Deus e do seu senhorio sobre a vida dos seus servos.
Objeção 2:
Não há nenhum mandamento no Novo Testamento que explicitamente ordene o cristão a entregar o dízimo.
Resposta:
O argumento do silêncio nunca é conclusivo. Assim como não há um mandamento explícito no Novo Testamento para que os cristãos entreguem o dízimo, também não há nenhuma indicação clara e conclusiva para que eles não o façam. Além do mais, o fato de não haver um imperativo no Novo Testamento quanto à prática do dízimo pode ser um indicativo de que a mesma fosse um exercício comum entre os cristãos, para o qual não haveria necessidade de exortação específica. Como Leland Wilson afirma, “o silêncio relativo sobre esse assunto pode ser compreensível se considerarmos que o dízimo era algo que Jesus, Paulo e os outros autores bíblicos praticavam como um ponto pacífico”.
Objeção 3:
Jesus condenou o dízimo entregue pelos fariseus.
Resposta:
Na verdade, o que Jesus condenou não foi o dízimo, mas a atitude dos fariseus em observar a entrega dos dízimos nos mínimos detalhes e negligenciar a justiça, a misericórdia e a fé (Mt 23.23). Além do mais, as palavras de Jesus, “devíeis, porém, fazer estas coisas, sem omitir aquelas”, indicam sua aprovação à prática da entrega dos dízimos. Alguns ainda se aventuram a defender que essas palavras de Jesus são ensinamentos antes da cruz e que não devem ser observados. Segundo esses, depois do Pentecostes é outra coisa. Mas Josué de Oliveira corretamente defende que: “Se isso é verdade, então todo o ensinamento dos quatro evangelhos é inútil para os cristãos”.
Objeção 4:
A única referência sobre o dízimo nas epístolas é um comentário sobre o sistema levítico.
Resposta:
É verdade que a única referência ao dízimo nas epístolas se encontra em Hebreus, num contexto em que o sistema sacerdotal é abordado. Contudo, o argumento do escritor da carta é que o sacerdócio de Jesus é superior ao levítico, pois Cristo é eterno e seu sacerdócio foi representado no ministério de Melquisedeque, que prefigurava o Messias (Hb 7). O que deveria causar a mudança da lei seria alteração do sacerdócio, mas o sacerdócio de Cristo não foi mudado desde Melquisedeque. Dessa forma, ao entregar o dízimo a Melquisedeque, o crente Abraão o entregou a Cristo e, por meio dele, todos os seus descendentes levitas. Ao invés de provar a ilegitimidade da entrega dos dízimos pelos cristãos, essa referência parece confirmá-la.
Objeção 5:
A contribuição estabelecida no Novo Testamento é voluntária e não proporcional.
Resposta:
Certamente não há nenhuma indicação da existência do dízimo tributário, como mais tarde foi desenvolvido na nação de Israel e permanece até os dias atuais. Todavia, deve-se observar que não existe nenhuma contradição entre o ato voluntário e a entrega proporcional. Ao escrever sobre a contribuição dos macedônios, Paulo afirma que: “na medida de suas posses e mesmo acima delas, se mostraram voluntários” (2Co 8.3). Com isso eles agiram voluntária e proporcionalmente em suas contribuições. O princípio da proporcionalidade indica que a condição financeira não é o critério determinante na contribuição cristã. Ao obedecer a proporção do mínimo de 10%, todos contribuem igualmente.
Objeção 6:
Não há referências da observância da entrega dos dízimos entre os cristãos da igreja primitiva.
Resposta:
É verdade que alguns argumentam que “a cobrança do dízimo no Cristianismo surgiu relativamente tarde, por volta do século 6º, assim mesmo não sendo aceita igualmente por toda a igreja”, e que “nos três primeiros séculos do Cristianismo não houve pagamento de dízimos, e muitos dos pais, como Irineu, por exemplo (séc. 2º), condenavam o dízimo por considerá-lo legalista e ritualista”.
Contudo, um exame da história da igreja primitiva revelará que essa asseveração é imprecisa e precipitada. Em um estudo sobre o assunto, Randy Alcorn demonstra como o próprio Irineu, bem como Agostinho e Jerônimo, enfatizavam o dever do cristão em contribuir por meio dos dízimos e ofertas.
Objeção 7:
Exigir contribuições dos cristãos é legalismo e, portanto, inconsistente com a liberdade cristã.
Resposta:
Liberdade cristã não significa autonomia. Um dos princípios básicos entre os reformadores é que a consciência cristã é serva da Palavra de Deus. Dessa forma, é sempre arriscado reivindicar uma liberdade que ultrapasse os limites das Escrituras. As contribuições cristãs devem ser reguladas pelo impulso, ou sentimento individual, ou por princípios bíblicos e pela consciência daqueles que temem a Deus? Em Cristo, o seu povo é liberto da maldição da lei. Mas isso não significa viver sem normas, inclusive no que diz respeito às contribuições financeiras dos cristãos.
Deus não precisa do dinheiro dos seus servos e nem depende dele para o avanço do seu reino.
Os textos das Escrituras referentes aos dízimos e as contribuições cristãs parecem indicar que esse exercício é, primeiramente, um reconhecimento de sua soberania sobre a vida humana e uma demonstração de que, para o devoto, a obediência ao Senhor sempre ocupa o centro de sua atenção.
Conclusão
A ausência de um mandamento explícito sobre o dízimo no Novo Testamento seria suficiente para considerar a sua prática como anticristã e legalista? O Novo Testamento esclarece que as ofertas dos cristãos deveriam ser praticadas à luz da encarnação de Cristo (2Co 8.9). Assim como Cristo deu-se plenamente pela redenção do seu povo, as ofertas dos seus discípulos devem ser inspiradas e motivadas pelo seu sacrifício.
A defesa de que o dízimo é uma lei vétero-testamentária que não se aplica aos cristãos parece ter sua motivação originada na questão financeira mais do que nas evidências exegéticas. Contudo, esse artigo não teve nenhuma presunção de responder a todas a indagações sobre o assunto, nem mesmo de encerrar o debate sobre o tema. As conclusões desse estudo indicam que o cristão zeloso pela prática do dízimo não precisa ter sua consciência atormentada pelo medo de praticar algo que contraria a Palavra de Deus.
Assinar:
Postar comentários
(
Atom
)
Nenhum comentário :
Postar um comentário